De chinelo e bermuda: a terra onde Miranda é só mais um João na fila do açougue

SÃO PAULO – Chinelo, bermuda e bicicleta. Voltas pelas ruas em um Corsa cinza velho. Até fila no açougue. Esses são alguns exemplos da rotina de “Joãozinho” quando ele está de folga em Paranavaí, no noroeste do Paraná. Tudo normal se o personagem em questão não fosse titular e um dos capitães do Brasil na Copa do Mundo da Rússia.
Miranda, dono de um currículo vitorioso entre os jogadores da seleção, nem sequer tem um assessor de imprensa e chama a atenção em sua terra natal justamente pelo excesso de simplicidade.
“Ele chega na cidade e ninguém nem fica sabendo. Coloca o chinelo, a bermuda e sai de bicicleta. Às vezes, ele pega um corsinha velho que a gente tem e fica dando voltas. Ele vai no açougue, para na fila e ninguém nem percebe que é ele. Ele não fala nada também. É muito simples, muito”, disse o irmão de Miranda, Angelito Miranda de Souza, o Tinga.
Histórias como essa fazem parte do cotidiano daqueles envolvidos no início da carreira do zagueiro no futebol, como mostra a série de reportagens “Garimpeiros do Brasil da ESPN Brasil”.
“A primeira vez que eu o vi, ele chegou em uma bicicleta preta e amarela no campo do antigo abatedouro central. Ele colocou a bicicleta em um canto, estava com um short do Vasco, veio até mim e pediu para treinar”, disse Aparecido Souza, conhecido como Kokan, o primeiro técnico do defensor.
Na época, Miranda jogava bola para se divertir, na rua com os amigos, muitas vezes descalço.
Já estava com mais de dez anos, idade avançada para tentar virar jogador – atualmente, muitos atletas começam com seis, sete anos. Miranda foi até a Kokan, cujas peneiras eram mais conhecidas, atrás de uma chance.
Para se ter ideia, Kokan ajudou nomes como Danilo Avelar, hoje no Corinthians, e Zeca, no Internacional. Ultimamente tem fornecido atletas para a base do Grêmio, equipe com a qual criou um vínculo como olheiro extraoficial.
O Miranda que chegou até Kokan, contudo, não era tão inexperiente. Acabou desenvolvendo estilo. Tudo porque batia bola com garotos mais velhos, mais experientes e mais “malandros”. Isso trouxe lições importantes.
“O que o Miranda tinha de diferente era o foco, a personalidade de falar pouco e observar muito. Ele olhava o jogo. Aliás, ele fala pouco fora de campo. Já dentro tem muita personalidade e liderança”, disse Kokan.
Logo ele passou a treinar com o time de Kokan no campo São Jorge, mais próximo da casa da mãe. O treinador precisou de poucos treinos/jogos para ver que tinha um jogador diferente em mãos.
“O que eu vi no Miranda é o que eu vejo dele hoje na seleção brasileira. Era um atleta que se posicionava bem, errava poucos passes, não dava bote na hora errada. Sabia esperar para fazer o desarme. Hoje, é a mesma coisa. É um jogador que faz poucas faltas, pode passar despercebido, mas é eficiente”.
Kokan acompanhou a carreira de Miranda até ele fazer um teste no Coritiba e passar, já no início dos anos 2000. Tudo parecia bem encaminhado, mas por um descuido quase o jovem perdeu a grande chance de mudar a vida.
“Ele já tinha sido encaminhado ao Coritiba. Fez um teste e passou. Mas não estava jogando e durante uma folga veio para Paranavaí e ficou. Até se inscreveu no Jogos da Juventude para atuar pela minha equipe”, relembrou Kokan.
“Em uma partida coincidiu de estar presente um diretor do Coritiba. Ele ficou impressionado especialmente com o futebol de um zagueiro magro, alto e rápido. Veio até mim e me perguntou quem era. Ficou surpreso ao saber que era o Miranda e que ele já fazia parte da base do Coritiba. Pediu ao Miranda para ele voltar rapidamente”.
Foi aí que o defensor engrenou de vez. Foi subindo, fez uma ótima Copa São Paulo de futebol júnior em 2004 (o time foi quarto colocado) e decolou. Foi promovido aos profissionais por Antônio Lopes, jogou a Copa Libertadores logo em seguida e foi vendido ao Sochaux, da França, pouco depois. Ficou uma temporada fora do país.
Na sequência, foi contratado pelo São Paulo, onde viveu a fase mais vitoriosa no país. Foram três títulos do Campeonato Brasileiro. Em seguida, jogou por Atlético de Madri e Inter de Milão, sua equipe desde 2015.
Kokan não foi apenas o descobridor do Miranda. Foi também o homem que o levou pela primeira vez ao Maracanã, no Rio de Janeiro, na Granja Comary, em Teresópolis, onde treina a seleção. São amigos até hoje.
“Para mim é motivo de orgulho ver ele no patamar que está hoje”, finalizou Kokan.
CRIANÇA FOLGADA – Miranda é o caçula de uma família com 12 irmãos. Quando tinha 11 anos, viu o pai morrer. Antes, aos seis, ele já havia superado o trauma de perder o irmão Pio, que tinha 24 e morreu com um choque elétrico. Outros dois já morreram.
Na visão dos familiares, Miranda é muito caseiro, muito apegado aos irmãos, à mãe e aos amigos.
O defensor também é o dínamo da família Souza. Com o que ganhou e ganha no futebol ajudou a todos. Deu casa própria para a mãe, para os irmãos/irmãs que já casaram e ainda sustenta financeiramente todos.
O zagueiro até fez uma promessa aos irmãos.
“Ele disse que se o Brasil for para a final vai nos levar para a Rússia. Vamos ver. A Copa tá demorando para acabar, né?”, disse Angelito Miranda de Souza, o Tinga, 56, irmão mais velho do defensor.
Tinga, que foi caminhoneiro durante quase toda a vida, guarda algumas recordações incomuns sobre Miranda.
“Ele era bem sossegado. Ele era tipo assim, de querer todas as coisas na mão. Era meio folgadão, para falar a verdade. Ah, ele pedia comida para a minha mãe no sofá de casa e depois pedia para ela levar água até ele, no sofá. E eu só olhando. Ainda falava: ‘Esse moleque é muito folgado’. Tá louco”, disse Tinga, aos risos.
Tinga também é quem mais se admira com a simplicidade do irmão famoso.
“Quando ele quase ganhou a Champions [em 2016] podia ter tido um carnaval na cidade. Mas ele chegou sem falar nada, ficou uns dias aqui e manteve a mesma rotina de sempre”, afirmou Tinga, orgulhoso das lembranças de uma infância simples e de um jogador que não perdeu a essência com o sucesso e a fama.