Fogo destruiu documentos do comandante da Carretera Panamericana

Toda manhã de domingo era o mesmo ritual. Leônidas Borges de Oliveira, cônsul do Brasil em Santa Cruz de la Sierra, esquentava a água da banheira de casa com uma resistência, jogava sais de banho e passava horas ali imerso, lendo as notícias do dia, fumando charutos, fazendo a barba.
Depois, tomava um banho de ducha e só encontrava a família para almoçar por volta das 13 ou 14 horas.
Num quarto próximo, um armário de madeira vivia trancado. Nele, Oliveira guardava suas fardas militares, o quepe, uma espada, a foto de um desfile militar de 7 de setembro e todos os registros da expedição pela Carretera Panamericana, à qual dedicou dez anos de sua vida.
Ele e a família moravam no próprio prédio do consulado brasileiro em Santa Cruz. No térreo, havia três salas destinadas aos serviços diplomáticos. Já a residência funcionava na parte de cima.
“O consulado era muito movimentado”, lembra o médico Erland de Oliveira Gonzales, de 66 anos, filho de Oliveira. “Por lá passavam embaixador, embaixatriz, agregado militar, agregado cultural. Além de gente que ia solicitar visto ou procurar informações sobre o convênio cultural Brasil-Bolívia. O Brasil representava uma potência na região e meu pai era o Brasil em Santa Cruz.”
Nascido em 25 de abril de 1903, numa tradicional família de Descalvado, Leônidas Borges de Oliveira serviu o Exército em Santa Catarina, Pernambuco e Rio de Janeiro. Descobriu os ideais do Pan-Americanismo em 1925, quando era primeiro-tenente, e passou a elaborar o projeto da futura expedição.
Durante a viagem, conheceu no México Maria Buenaventura Gonzáles, com quem se casou e teve dois filhos – Erland e Margot de Oliveira Gonzáles. Depois de voltar ao Brasil, foi nomeado pelo então presidente Getúlio Vargas cônsul privativo do Brasil na Bolívia, onde permaneceu por mais de 20 anos. Morreu em 31 de março de 1965, aos 61 anos. Seu corpo foi transladado ao Brasil e sepultado em São Paulo.
Gonzales conta que Oliveira não costumava falar muito sobre seus dez anos de aventuras pelas três Américas. “Eu tinha 15 anos quando ele faleceu. Lembro que, quando eu precisava estudar a geografia da América na escola, ele pegava o diário da expedição e me dizia: ‘Você vai ver que está melhor que qualquer livro’. Mas ele não comentava muito comigo e com minha irmã mais nova sobre isso. Para mim, meu pai era o cônsul do Brasil em Santa Cruz. Só depois é que fui descobrindo toda a história dele.”
Mesmo na Bolívia, o cônsul manteve alguns hábitos que adquiriu na época da expedição. “Sexta-feira ele costumava organizar uma pescaria com amigos brasileiros e bolivianos e levava uma malinha com dinamite”, lembra o filho. “Se estava difícil o caminho, ele pegava uma banana de dinamite, acendia com o charuto e atirava para abrir espaço.” Era com dinamite que costumava abrir caminhos da Carretera Panamericana.
Segundo o filho, o expedicionário era uma “pessoa tranquila, negociadora e calma”. “Se eu o vi um pouco nervoso ou falando mais alto, foi quando fiz umas besteirinhas. Era um bon vivant, de bem com a vida.”
Mas o cônsul, lembra Gonzales, evitava falar dos tempos antigos. “Quando ele voltou dos Estados Unidos para o Brasil, parece que ficou decepcionado, amargurado até, pelo fato de a aventura não ter tido toda a repercussão que ele esperava. Então ele não contava, não mostrava. Guardou para si esse trabalho e foi cumprir outra missão. Não compartilhou com ninguém a história e ela caiu no esquecimento.”
O médico lembra que o pai foi reconhecido por todos os países por onde passou e permaneceu vários meses nos Estados Unidos fazendo palestras. “A ideia dele era construir a estrada para unir as três Américas e permitir aos países deslocar seus produtos pelos centros comerciais para que crescessem, prosperassem. Tinha sentido, fundamento, ideologia.”
Oliveira morreu em 1965, aos 61 anos. O filho acha que foi do coração, porque ele era hipertenso. Três anos depois, em 1968, Gonzales veio para o Rio de Janeiro estudar Medicina, a mesma carreira da mãe, Maria Buenaventura Gonzáles, que foi uma das primeiras médicas a se formar na Universidade Nacional do México e era conhecida em Santa Cruz de la Sierra pelos trabalhos sociais.
Ela conheceu Oliveira quando trabalhava no sul do México. Tempos antes, tinha tido um sonho em que a Virgem Maria juntava a mão dela à de um homem que não conhecia. “Um dia, meu pai chegou ao hospital com paludismo, malária, disenteria. Quando ela viu meu pai, reconheceu essa pessoa do sonho.”
Depois que Gonzales deixou Santa Cruz, a mãe, a irmã e o cunhado permaneceram na casa e começaram a presenciar acontecimentos estranhos. Ouviam gritos, móveis sendo arrastados de lá pra cá, luzes apagando sozinhas, principalmente no banheiro predileto de Oliveira.
Também era comum ouvirem bater de dentro para fora do armário onde estavam as coisas dele. “Alguns diziam: coronel Leônidas, deje de molestar”, conta Gonzales, rindo. Logo a casa ganhou fama de mal-assombrada. Diziam que o velho comandante não gostava de intrusos.
Numa noite de inverno, um grito mais forte acordou toda a família: quando eles levantaram, não viram ninguém, só um cachorro. “Minha mãe era muito católica, fazia ações sociais e tinha muita ligação com dois bispos.
Depois desse grito mais forte, ela contou a eles o que estava acontecendo e eles vieram benzer a casa. Foi então que mandaram pegar o armário dele com tudo o que tinha dentro, colocar no pátio da casa e atear fogo.”
Foram destruídas pelas chamas não só as fardas de Oliveira como todos os registros da expedição, a foto com Getúlio Vargas no Palácio do Catete, o livro com os mapas por onde a estrada passou, as notas sobre os povoados que encontraram, as assinaturas das pessoas que conheceu pelo caminho.
Por sorte, só sobrou o diário da viagem, que estava longe dali, na caixa de brinquedos do filho, e anos depois seria entregue ao escritor Beto Braga e ajudaria a começar a resgatar a importância do pai e de seus dois companheiros para a história do Brasil.
A destruição do armário não acabou com os barulhos estranhos. Depois que a família vendeu a casa, o novo dono a alugou para uma empresa de engenharia. Um vigia tomava conta da propriedade. No dia seguinte, pediu demissão. As teclas das máquinas de escrever batiam sozinhas à noite.

Chefe da expedição recebe
condecoração póstuma

Em julho deste ano de 2017 o Exército concedeu, a título póstumo, a Medalha da Ordem do Mérito Militar ao tenente-coronel Leônidas Borges de Oliveira, no grau de Oficial. O anúncio da condecoração – destinada a cidadãos e instituições que tenham prestado serviços relevantes – foi publicado em 16 de dezembro de 2016 no Diário Oficial da União, como um decreto do presidente Michel Temer.
No texto, Oliveira é apresentado como chefe da Expedição Brasileira da Estrada Pan-Americana e cônsul privativo do Brasil na Bolívia. O filho dele, Erland de Oliveira Gonzales, recebeu a medalha em Brasília, em cerimônia que teve a participação do próprio Temer, dos comandantes das Forças Armadas e do juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato na 1.ª instância, também condecorado. “Foi uma emoção muito grande ver o nome do meu pai ser reconhecido depois de tanto tempo”, afirma Gonzales.
O pedido da mais importante medalha do Exército para Oliveira havia sido feito meses antes pelo escritor e empresário Beto Braga. “A memória desse feito grandioso precisa ser resgatada e recontada e o trabalho desses intrépidos aventureiros, reconhecido. Eles precisam ser colocados entre os homens que fizeram história no século 20”, diz, empolgado. “Se fossem americanos, teriam uma estátua em cada cidade.”
O escritor planeja doar o acervo que reuniu sobre a expedição para alguma instituição. “Tenho muitos documentos, muitos objetos, muitas fotos, e sempre digo que isso não é meu, é do Brasil. Mas ainda não achei o lugar certo para essa doação”, lamenta.
Segundo Braga, historiadores vinculados a universidades de países americanos têm feito pesquisas sobre a criação da Estrada Pan-Americana e já há projetos até de erguer monumentos em homenagem aos brasileiros. Na Costa Rica, por exemplo, existe a ideia de criar uma estátua em homenagem aos expedicionários na capital, San José, desenhada pelo escultor Ángel Lara. (Texto SB)
(Próxima edição: Enchente acabou com recordações do observador da viagem)