Quem são e o que pensam os gaúchos
Os Centros de Tradições Gaúchas se encarregam de divulgar as tradições da população que tem origem no Rio Grande do Sul, forjadas nas lutas pela independência e pela consolidação da cidadania, formação educacional e cultural herdadas em sua grande parte dos antepassados e aperfeiçoadas no presente.
Assim é também em Paranavaí, onde o CTG Fazenda Velha Brasileira tem nesta semana diversas atividades para comemorar a Revolução Farroupilha, uma das tradições gauchescas neste dia 20 de setembro.
Em qualquer estância nos confins do Rio Grande do Sul ou em outros lugares do Brasil, por onde se espalharam os gaúchos, diz-se que há sempre um mate fumegante à espera das visitas. Símbolo da afamada hospitalidade campeira, a regra pode não ter o mesmo peso nos centros urbanos, mas pesquisadores garantem que, apesar de todas as transformações sociais e tecnológicas em curso, tradições gaúchas como o consumo do chimarrão, o canto do hino riograndense e o uso da pilcha seguirão vivas pelas próximas décadas. e graças ao empenho dos mais jovens em preservá-las.
Assim como foram rapazes recém-chegados aos 20 anos que lançaram as bases do tradicionalismo, em 1947, um levantamento realizado revela que, mais uma vez, é a juventude a principal linha de defesa dos costumes regionais.
A pesquisa Persona – Quem São e o que Pensam os Gaúchos?, realizada por Grupo RBS e Consumoteca, mostra que 93% da população até 24 anos está determinada a transmitir os hábitos locais às futuras gerações -maior índice entre todas as faixas etárias investigadas.
Na média geral 83% fazem questão de deixar como legado a seus descendentes pelo menos parte da cultura nativa a exemplo do mate e do churrasco. Engana-se quem acredita que esses dois ícones do gauchismo sempre fizeram parte do modo de vida nas cidades.
Segundo Paixão Côrtes, um dos jovens que fundaram o tradicionalismo no fim da década de 1940, o chimarrão e a carne assada não eram paixões generalizadas até o final dos anos 1930. “Não existiam churrascarias.
O churrasco como degustação popular pública apareceu em 1935 na Exposição Rural do Centenário da Revolução Farroupilha, em Porto Alegre (…). Com o chimarrão, não se chegava nem à janela de casa” – relembrou Côrtes numa entrevista a Zero Hora em 2012.
A família Webber é um exemplo de como os jovens, atraídos aos CTGs por grupos folclóricos que reúnem milhares de participantes por todo o Rio Grande do Sul estão forjando uma nova geração de cultuadores das tradições. As invernadas, como são chamados os grupos de danças típicas, participam de concursos e mobilizam famílias interessadas tanto em preservar costumes regionais como direcionar crianças e adolescentes para ambientes que consideram mais saudáveis.
Outro sinal perpetuação está nas práticas de quem vive longe do pago. Questionados sobre o que o gaúcho faz para não esquecer a terra natal quando mora fora, apenas 5% dos entrevistados responderam "nada". Para 64% a principal medida é assar churrasco sempre que possível; para 53% é tomar chimarrão e para 34% é seguir falando gírias locais, do "tchê" ao "bem capaz".
“O que percebemos é que a nova geração tenta trazer para a tradição novos elementos. A tradição não está acabando – diagnostica Bruno Maletta, diretor da Consumoteca, empresa de Inovação e Pesquisa responsável pelo levantamento.
Os centros ligados ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) atuam como polos de propagação do gauchismo dentro e fora do Rio Grande do Sul. A direção do órgão contabiliza quase duas mil entidades filiadas dentro do Estado, pelas quais se estima circularem dois milhões de pessoas por ano, outro tanto em outras partes do Brasil e centenas mundo afora. O presidente do MTG afirma que os jovens têm papel fundamental na preservação do regionalismo.
O desejo de perpetuar a bagagem cultural é mais forte entre homens e mulheres que praticam o tradicionalismo no cotidiano, os "Gaúchos Fiéis", como foram batizados na pesquisa – 63% deles se dispõem a transmitir "todas as tradições", sem restrição. Mas o plano de deixar o gauchismo como herança não se limita aos pólos tradicionalistas ou a seus adeptos. Mesmo entre os riograndenses que não se sentem identificados com CTGs, avessos ao gauchismo e dispostos a migrar – os chamados "Gaúchos Desapegados" – 55% admitem a intenção de passar pelo menos alguns costumes aos rebentos, em especial o gosto pela bebida amarga herdada dos antepassados e pela carne assada na brasa.
A preocupação com a renovação aflora inclusive nos ambientes marcados pelo culto às origens, onde o dilema entre conservar velhos hábitos e evoluir é cada vez mais presente. O gaúcho é conservador, sim, mas está se adaptando aos novos tempos. As mulheres estão participando de forma cada vez mais ativa do movimento tradicionalista, e isso é bom, afirma uma participante.
Endriele Silveira considera a evolução positiva e acredita que mudanças do tipo são importantes para assegurar sobrevida ao tradicionalismo.
Na busca por ampliar o número de associados, os CTGs têm ampliado os espaços para as mulheres. Uma das novidades tem sido a criação de um grupo exclusivo de cavaleiras, batizado de Joaquinas, que promove cavalgadas na Semana Farroupilha e chama atenção por onde passa. A atividade acabou se transformando em chamariz e motivo de orgulho.
“A gente tem de olhar para frente e avançar nas nossas ideias, mas sem pisar no nosso rastro, naquilo que nos foi deixado. Podemos até sofrer críticas do MTG, mas com eles a gente se entende. A verdade é que não dá para parar no tempo. Ninguém mais quer vir aqui só para dançar o pezinho – afirmam defensoras da ideia.
A falta de interesse de alguns jovens pela tradição preocupa alguns dirigentes dos CTGs. Tem pouca renovação.
Embora 51% dos entrevistados acreditem que nada ou quase nada mudou na imagem do gaúcho típico, 29% já detectam alterações. Para 14% dessa parcela, o antigo estereótipo já não combina com o novo retrato de quem nasce e vive no Rio Grande do Sul.
Apesar das transformações em andamento, a conotação sexista de certos aspectos da tradição ainda afasta potenciais adeptos. O empresário Claudio Alexandre da Silva Kohls chegou a optar por não levar a filha de três anos à escolinha durante as comemorações farroupilhas por entender que era prematuro vesti-la de prenda e apresentá-la à cartilha tradicionalista.
Embora goste de churrasco e chimarrão, a única bombacha no seu guarda-roupa – presenteada por um conhecido – era de origem uruguaia. “Não sou contra as tradições gaúchas, mas me preocupa um pouco o machismo em algumas práticas e nas letras de certas músicas, ainda mais sendo pai de uma menina. Tenho amigos no meio, respeito muito quem gosta e sei que nem todos pensam assim, mas acho cedo para incutir isso na cabeça dela. Quero que ela tenha condições de decidir. No futuro, se ela quiser participar de CTGs, tudo bem. Não vou me opor – ponderava o empresário.
Ainda que reconheça as divergências, a cantora Fátima Gimenez, famosa por entoar o Hino Riograndense em eventos, avaliava que o movimento tradicionalista "está cada vez mais forte" e que a tendência é seguir assim daqui para frente.
Um dos exemplos da pujança do tradicionalismo, conforme a intérprete, é a popularidade alcançada por eventos como o Encontro de Arte e Tradições Gaúchas (Enart), que ganhou ares de megaespetáculo. Nos últimos anos, o evento passou a atrair multidões a Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, para a etapa final da competição de danças, protagonizada basicamente por jovens. Fátima cita mais indicativos de que o tradicionalismo vive um momento de expansão.
“Há uma redescoberta da tradição e de que ela é bonita. mas é claro que algumas pessoas no meio ainda são muito preconceituosas, e isso tem de mudar. É preciso abrir as mentes e caminhar para um mundo de mais igualdade e respeito”, dizia Fátima.
Estudiosos da identidade regional, historiadores como José Augusto Fiorin concordavam que o movimento tradicionalista "jamais vai acabar". Afinal de contas, gaúcho não é só aquele que usa bota e espora mas é quem nasce no Rio Grande do Sul.
(Texto de Saul Bogoni, tendo como fonte reportagem de Juliana Bublitz e Marcelo Gonzatto para a Zero Hora).