Investigação criminal do Ministério Público polemiza pauta do Congresso
Vejam os principais argumentos favoráveis e contrários ao projeto.
A PEC 37 foi apresentada em junho de 2011 pelo deputado federal e delegado de polícia Lourival Mendes (PTdoB-MA). O texto altera trecho da Constituição, indicando que a apuração das infrações penais é função privativa das polícias Civil e Federal.
Na prática, a medida impedirá o Ministério Público de assumir investigação de crimes, prática usual desde que teve seus poderes ampliados na Constituição de 1988.
Dados do Ministério Público Federal indicam que, desde 2010, o órgão atuou 14,7 mil vezes por meio de procedimentos próprios na área penal e 77,9 mil vezes motivado por inquéritos policiais, termos circunstanciados e outros procedimentos judicializados. Não há dados consolidados sobre a atuação nos estados.
A PEC 37 já foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e em comissão especial da Câmara dos Deputados no final do ano passado. Segundo o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), o texto será colocado em votação no plenário até junho. Ele sinalizou que só vai encaminhar o assunto se houver acordo entre as partes interessadas.
Nas comissões, prevaleceu a ideia de que a investigação criminal é privativa das polícias. O relator da comissão especial, deputado Fábio Trad (PMDB-MS), chegou a propor um texto mais amplo, regulamentando as situações em que o MP poderia agir de forma subsidiária, mas o parecer foi rejeitado.
Para o deputado, há boas chances de a discussão voltar no plenário. “Depois da declaração do presidente Henrique Alves, de que pautará quando houver acordo entre as instituições, minha proposta está ganhando apoio dos moderados, tanto do Ministério Público quanto das polícias”, avalia Trad.
Segundo ele, além de permitir maior consenso político, a proposta está de acordo com votos já proferidos no Supremo Tribunal Federal (STF). A maioria dos ministros vem defendendo o papel complementar do Ministério Público nas investigações, segundo regras específicas.
Enquanto isso, grupos de parlamentares já se mobilizam para alterar ou barrar a PEC. “A quem pode interessar proibir o Ministério Público de investigar a prática de crimes? Certamente à sociedade brasileira é que não interessa”, analisa o deputado Alessandro Molon (PT-RJ). “Retirar investigação do Ministério Público é atentar contra a República”, completa o senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP).
Favoráveis à PEC 37 apontam descontrole do Ministério Público
Defensores da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, que limita a atuação criminal do Ministério Público (MP), dizem que o órgão aproveita suposta brecha na Constituição para exercer um papel investigativo que não lhe compete. Além disso, o MP estaria escolhendo os casos em que quer atuar e desrespeitando garantias previstas nos inquéritos policiais, como o fornecimento de informações aos investigados.
A Constituição estabelece que o Ministério Público deve agir em defesa dos interesses da sociedade (como o direito à vida, à liberdade e à saúde) e como fiscal da lei, propondo ações civis e penais. Em geral, as denúncias criminais derivam de provas colhidas pelas polícias, mas o MP também vem atuando de forma subsidiária e até mesmo independente nas investigações. Críticos argumentam que essa função não é autorizada pela Constituição, e que propostas nesse sentido apresentadas na Assembleia Constituinte de 1988 foram rejeitadas.
Para o presidente da Associação de Delegados da Polícia Federal, Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, o Ministério Público deve priorizar suas funções exclusivas, como os inquéritos civis. Nesse caso, a proporção entre procedimentos abertos e arquivados chega a quase 60%. Na área criminal, Leôncio destaca estudo do Ministério da Justiça indicando que 3,4 milhões de inquéritos policiais aguardam avaliação do Ministério Público. “E ainda acha que terá fôlego para investigar diretamente crimes, se nem as denúncias estão em dia?”, pergunta.
O representante da Associação de Delegados de Polícia do Brasil, Magnus Barretto, acredita que a PEC provocou uma discussão necessária sobre a atuação “sem controle” do Ministério Público. “O MP não quer o dever de investigar. Quer o poder de investigar, de escolher o que ele quer investigar. E isso é direcionado a pessoas poderosas, ricas e famosas. Não gira para qualquer um, porque é venda de mídia”, argumenta.
Segundo Barretto, os favoráveis à PEC não querem que o MP deixe de atuar criminalmente, e sim que as demandas passem pelas polícias. “O MP, como titular da ação penal, tem o controle externo da polícia, pode pedir a instauração do inquérito policial. Pode pedir diligências fundamentadas para robustecer suas denúncias. O que não pode acontecer é ele fazer investigação como está fazendo hoje”.
A mesma opinião é compartilhada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Durante audiência pública na Câmara dos Deputados, o representante da Ordem Edson Smaniatto disse que o sistema atual, além de permitir investigações em segredo, dá ao Ministério Público a possibilidade de “criar a verdade material que mais lhe interesse”. A entidade defende que, ao focar na apuração criminal, o MP está se desvirtuando de sua função pública voltada à coletividade.
Para os defensores da PEC, a proposta não impede a investigação administrativa por órgãos técnicos, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras e a Receita Federal, além de não inviabilizar apurações pelas comissões parlamentares de Inquérito e as correições internas em tribunais e no próprio Ministério Público
Ministério Público diz que limite para investigação aumentará impunidade
Preocupados com o avanço da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37 no Congresso Nacional, unidades do Ministério Público e associações de classe estão em mobilização permanente desde o início do ano. Nas palavras do chefe da instituição, Roberto Gurgel, o projeto é “um retrocesso gigantesco para a persecução penal [que inclui a investigação e o processo penal] e para o combate à corrupção”.
O principal argumento contra a PEC é que a concentração da investigação nas polícias vai contra os interesses da sociedade, pois quanto mais entidades investigando, maior a chance de identificar crimes. Dotado de autonomia técnica e administrativa, o Ministério Público também acredita que as polícias nem sempre têm independência para apurar crimes mais complexos, como os cometidos por políticos e grupos de extermínio.
Para Roberto Gurgel, a PEC é uma forma de retaliação ao Ministério Público devido à apuração de crimes cometidos por políticos e pessoas de grande poder econômico. “A PEC 37 começou como iniciativa de associações da polícia, mas hoje os interesses vão muito além da questão corporativa da polícia. O interesse é de algumas pessoas que não gostam de ver o Ministério Público como instituição independente e dotada das funções necessárias para cumprir sua função”.
Críticos da PEC identificaram que o Ministério Público é impedido de investigar em apenas três países do mundo – Uganda, Quênia e Indonésia. Para o representante do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais (CNPG), Manoel Onofre, essa situação reforça o retrocesso do projeto. “Se o MP é responsável pela ação penal, porque ele não pode organizar, completar e realizar essa investigação?”, questiona.
Segundo o procurador, o Ministério Público não quer investigar sozinho, e sim em parceria com a polícia sempre que possível. Ele destaca levantamento recente que aponta que 70% das operações de maior sucesso foram realizadas em pareceria com a polícia. Por outro lado, Onofre lembra que a taxa de elucidação de determinados crimes, como os de homicídio, ficam abaixo de 8%. “Imagina em uma realidade dessa, em um país como o nosso, se as instituições que vêm dando sua contribuição forem proibidas de investigar”?
Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Alexandre Camanho, é falsa a crítica de que o Ministério Público investiga de forma arbitrária. “Dizer isso é desconhecer que o MP tem inúmeras regras, limitações, balizas, não só legais como normativas. Como titular da ação penal, o MP se preocupa com a legitimidade formal de sua investigação para que ela não seja anulada”.
Camanho acredita que o texto está sendo discutido artificialmente na Câmara dos Deputados. “A comissão especial da PEC era muito singular, com pessoas de perfil próprio, que foram refratárias a qualquer tipo de conversa com a sociedade”.
A representante da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, Norma Cavalcantti, lembra que a bancada policial reúne 36 representantes, enquanto os integrantes do Ministério Público não podem concorrer a cargo eletivo desde 1988. Ela diz que o órgão está aberto a discutir regras. “Só não aceitamos essa situação de proibição total”, avalia.
Maioria no STF quer Ministério Público seguindo regras para investigar
Antes de chegar ao Congresso Nacional, a discussão sobre os poderes de investigação do Ministério Público já havia começado no Judiciário. O assunto é tema de pelo menos 30 processos no Supremo Tribunal Federal (STF), que ainda não se manifestou definitivamente. Ao menos sete ministros das formações mais recentes do Tribunal votaram a favor do Ministério Público, mas defenderam regras mais claras nas apurações, em maior ou menor escala.
São eles Cezar Peluso, Ricardo Levandowski, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia. Mesmo entendendo que o Ministério Público não pode presidir inquéritos, Joaquim Barbosa e Carlos Ayres Britto não mencionaram imposição de regras. Já Marco Aurélio Mello defende que a apuração criminal é atividade privativa das polícias. Cezar Peluso e Ayres Britto se aposentaram no segundo semestre de 2012.
A maioria dos ministros quer que o MP siga as mesmas regras do inquérito policial, com supervisão do Judiciário e publicidade de informações aos acusados. Alguns limitaram a área de atuação do MP aos crimes cometidos por integrantes da própria instituição e por agentes policiais, crimes contra a administração pública ou ainda se a polícia deixar de agir. Parte dos ministros defende que não é necessário acionar as polícias quando as acusações derivarem de dados concretos de órgãos administrativos ou de controle, como fraudes previdenciárias ou tributárias.
“Reafirmo que é legítimo o exercício do poder de investigar por parte do Ministério Público, porém, essa atuação não pode ser exercida de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais”, defendeu Gilmar Mendes. Em mobilização recente contra a PEC 37, Ayres Britto disse que subtrair o poder investigativo do Ministério Público é uma “hecatombe jurídica”, mas que a instituição precisa seguir regras “para não ser refém de si mesma” e “evitar arbítrios”.
O STF registra pelo menos 100 ações em tribunais de todo o país questionando a investigação promovida pelo Ministério Público. Elas estão suspensas, aguardando a palavra final da Corte. Defensores da PEC 37 argumentam que o texto atual da proposta valida as apurações feitas até agora, eliminando esses questionamentos judiciais e evitando prescrições.
O presidente da Associação de Juízes Federais do Brasil, Nino Toldo, diz que a maioria dos associados já se manifestou favoravelmente ao poder de investigação do Ministério Público. Para a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o órgão não pode deixar de investigar, especialmente quando os criminosos dificultam o trabalho da polícia ou estão dentro da própria corporação. “Um Ministério Público imóvel dentro do processo, que não pode investigar, é contramão da história mundial”, avalia o presidente da AMB, Nelson Calandra.