Enchente acabou com recordações do observador da viagem

Olívia Camargo da Cruz tinha 14 anos na época em que conheceu Francisco Lopes da Cruz, um dos três expedicionários da Estrada Pan-Americana. Estava com a irmã na janela de casa, em Guararema, quando o então chefe de almoxarifado da Companhia de Serviços de Engenharia passou.
Trinta e dois anos mais velho do que ela, ele estava na cidade para trabalhar nas obras da Variante do Parateí da Estrada de Ferro Central do Brasil. Os dois começaram a conversar e dias depois ele procurou Mário Paes de Camargo, o pai de Olívia, para pedi-la em namoro.
“Ele era um charme, bonitão, muito inteligente e culto, um noivo e tanto”, lembra a senhora que atualmente  tem 91 anos e vive em Mogi das Cruzes. “Aprendi a dançar com ele.”
Ativa e muito animada, dona Olívia conta que namorou Lopes da Cruz por cinco anos e, após ter de remarcar duas vezes a data do casamento por problemas de saúde na família, os dois finalmente conseguiram se casar e viveram juntos até a morte do observador da Expedição Automobilística Brasileira, há 50 anos.
Nascido em Florianópolis em 2 de fevereiro de 1903, Francisco Lopes da Cruz era oficial da Aeronáutica e foi parar na expedição por seus conhecimentos de Engenharia e de aparelhos de navegação, como sextante e teodolito.
Após voltar ao Brasil, passou oito anos trabalhando na Companhia de Serviços de Engenharia, no Rio de Janeiro, e os últimos anos de vida no interior de São Paulo, entre Guararema e Mogi das Cruzes.
Ironicamente, o homem que enfrentou uma década de viagem do Rio aos Estados Unidos morreu em Mogi na véspera do Natal de 1966, um dia depois de ser atropelado pela Kombi de uma granja.
“Foi uma ironia do destino”, resume a filha Leonor Camargo da Cruz Ruiz, de 67 anos. “Meu pai que passou por tantos perigos durante a expedição, foi picado por cobra e ficou anos no meio do mato, foi morrer no meio da cidade, atropelado por um motorista irresponsável, que falam que estava bêbado. Acho que o destino dele era para ser assim, mas ficamos muito abalados. Foi uma etapa muito difícil. Ele era uma pessoa muito alegre.”
Logo depois de se casar, Lopes da Cruz passou oito anos morando no Rio de Janeiro com Olívia. “Foi um tempo maravilhoso. Íamos muito a cinemas, teatros, passeios. Foi lá que nasceu nossa primeira filha, Estela”, lembra a viúva. Além da Companhia de Engenharia, Lopes da Cruz trabalhou na Casa da Borracha, em São Cristóvão, e numa firma de rádios. Por causa de uma doença do pai de Olívia, os dois decidiram viver no interior de São Paulo, primeiro em Guararema e depois em Mogi.
O tema da expedição pelas Américas surgia de vez em quando nas conversas. “Ele contava sobre a viagem, falava de coisas pitorescas nos países, de quando esteve nos EUA e conheceu o presidente Roosevelt”, lembra Olívia. “Também falava sobre os companheiros, dizia que eles passavam muitas dificuldades, mas quando chegavam aos países era aquela festa.”
Um dos casos mais curiosos foi quando o observador da expedição caiu numa tribo de índios no Panamá . “Ele contava que foi obrigado a casar com uma índia e ela era virgem”, diverte-se Olívia. E se ela ficou com ciúme? “Não. Eu nem tinha nascido nessa época.”
Diferentemente de Estela, Leonor já nasceu no interior de São Paulo. Simpática e sorridente, ela lembra que todo mundo em Mogi sempre achou que as fantásticas histórias contadas por Lopes da Cruz tinham uma parte de invenção.
“Como eu, muita gente achava que era mentira. Meu pai era muito brincalhão e contava as histórias no armazém, no açougue, na padaria. O pessoal não acreditava muito. A gente mesmo pensava: será que é verdade? Que ele viveu tudo isso mesmo? Ninguém tinha ideia da grandiosidade do que ele viveu. Por falta de interesse, nunca fomos atrás. Só depois é que descobrimos mais detalhes e ficamos encantados.”
Chamado de “capitão” pelos amigos, Lopes da Cruz terminou a vida trabalhando como vigia em Mogi. “Quando veio do Rio de Janeiro, meu pai já tinha uma certa idade, sofria com dores no joelho e foi difícil arrumar emprego. Naquela época não tinha nada em Guararema e o que ele conseguiu achar de serviço foi de guarda-noturno.”
Em 23 de dezembro de 1966, ele estava de folga em casa, mas resolveu fazer uma ronda de prevenção para checar se estava tudo em ordem nas lojas e casas que tomava conta. Ao atravessar a Avenida Voluntário Fernando Pinheiro Franco, foi atropelado pela Kombi. Chegou a ser socorrido, mas faleceu um dia depois.
Sem reservas e com aluguel para pagar e duas filhas para sustentar, Olívia, que nunca tinha trabalhado, ficou desamparada. Para sobreviver, começou a andar pela cidade vendendo cosméticos e enxovais com catálogos. As filhas anteciparam a entrada no mercado de trabalho.
“Eu tinha de 12 para 13 anos e comecei numa relojoaria. Estudava de manhã e trabalhava à tarde. Fiquei lá oito anos e depois fui para uma loja de roupa masculina, onde estou há 35 anos”, lembra Leonor. “Hoje não temos luxo, mas temos nosso apartamento, mamãe está muito bem de saúde.”
Viúva há 50 anos, Olívia não quis casar de novo. Além das duas filhas, tem quatro netos, sete bisnetos e três trinetos. Com uma memória invejável, gosta de ler jornais, fazer exercícios físicos e participar de programas de rádio. Otimista, só lamenta ter perdido fotos de seu casamento e da expedição do marido numa enchente há alguns anos.
“Nós mudamos para uma casa na Rua Ipiranga, em Mogi, e eu não sabia que ali dava enchente. Quando descobrimos, estava com água até o joelho. Nós tínhamos fotos tão bonitas, mas perdemos tudo nessa enchente.” (Texto SB)
(Próxima edição: Ex-paranavaiense ganha museu com seu nome no interior paulista)