Arte de enganar espelho
O tempo é mesmo um rato que rói a vida e lhe muda a aparência, como assentado por Machado de Assis. Tem a capacidade de dar, modificar, tirar; e só ele, por meio da nossa memória, é capaz de reviver e permitir que olhemos para o fundo de um poço na introspecção, ou para o alto de uma torre na altivez.
Ele nos amarra em um comprido balanço de cordas invisíveis e brinca conosco como marionetea voejar entre o ontem e o hoje pelo espaço infinito, e nessa jornada, passamos acreditar que também é infinito o destino, até cairmos diante do espelho; aí ficamos de quatro, sem saber se rimos ou choramos.
É bom que se diga que o espelho é o mais eficaz ajudante do tempo nesse vai e vem do balanço; é dotado de uma franqueza tão natural, tão rude e tão espontânea que nos obriga a acreditar no que mostra, já que sua honestidade pode ser testada e submetida a qualquer prova porque é verdadeiro, gostemos ou não; chorando de quatro ou sorrindo de pé.
O que fazer se o tempo ao dar, nos tira? Dá a beleza da juventude, a robustez do adulto, a experiência do idoso; ao mesmo tempo abocanha os dias como um rato voraz de fome insaciável, o rato nosso de cada dia.
Como um moveleiro, enverniza com algodão a infância e juventude fazendo-as belas e radiantes num mundo de aventuras; pule com lixa grossa a face adulta moldando-a para a realidade das coisas e, por último, lavra a velhice com enxó impiedosa, e com ela desbasta o corpo em rugas, sulcos, pintas, sardas, verrugas, dando-lhe a aparência de fim. Ao velho, dá também a certeza de que o balanço impulsionado pela vida agora só vai, e nessa ida espicha as pernas do balanço, sem conseguir voltar na mesma velocidade e intensidade de antes.
O que fazer diante dessa condição que não permite o estorno como o lançamento contábil, sabendo que o espelho não perdoa? Evitá-lo como às coisas que nos assombram?
Acho que não, talvez devamos fazer como a criança num parque de diversões que goza o máximo da alegria do momento porque sabe que o preço do ingresso é impeditivo para um regresso tão breve, “porque a vida tem prazo de duração, a alma não” .
E diante do espelho, o que fazer? Já que ele somente mostra a verdade, por que não enganá-lo também, vingando do tempo que nos enganou? Mostremos a ele um sorriso largo, desses que demoram sair do rosto, desses que deixamos vazar espontaneamente quando nos sentimos felizes. E esperemos a reação.