“Ela não poderia estar sozinha”, diz tio de escrivã morta no MA

SÃO PAULO – Formada em direito e integrante de uma família de advogados, a escrivã da Polícia Civil Loane Maranhão Silva Thé, 31, morta a facadas enquanto colhia o depoimento de um suspeito, no Maranhão, foi desaconselhada pelo pai a seguir a carreira policial.
"Eu disse: ‘é perigoso, minha filha. Você é estudiosa, faz um curso para ser promotora ou juíza’", lembra o engenheiro agrônomo Flávio Thé, professor aposentado da Universidade Federal do Piauí. "Mas ela disse que queria ser policial, era feliz assim. Estava se preparando para o concurso de delegada", conta.
O sonho de Loane terminou na manhã desta quinta-feira (15), numa sala da Delegacia da Mulher de Caxias, cidade a 361 km de São Luís.
Ela foi morta a facadas enquanto colhia o depoimento de um homem suspeito de estuprar as duas filhas. O gari Francisco Alves da Costa esfaqueou a escrivã no pescoço e no peito, segundo a polícia.
A investigadora Marlene Almeida, que estava em outra sala, ouviu os gritos e tentou socorrer Loane, mas também foi esfaqueada. Socorrida, ela passa bem.
No velório, na manhã desta sexta-feira (16), a família estava dividida entre o susto, a dor da perda e a revolta pelo que aconteceu.
O advogado criminalista Nazareno Thé, tio de Loane, pretende se habilitar como assistente de acusação e diz que houve negligência na delegacia. "Ela não poderia ter ficado sozinha. Uma escrivã não pode tomar o depoimento sem delegado", disse.
"Foi uma falta de segurança total. Um homem suspeito de estuprar as filhas entrou na delegacia sem ser revistado, com uma faca escondida. Depois, ficou sozinho com minha filha numa sala", afirmou o pai da escrivã.
A família estuda a possibilidade de processar o Estado. Para Flávio Thé, a filha transformou-se numa mártir, e a morte dela pode contribuir para que situações como essa não voltem a acontecer.
"Isso é comum em outras delegacias: o escrivão toma depoimentos sozinho. É um problema do Estado brasileiro, que não valoriza o cidadão. Deixa morrer nos corredores de hospital, trabalhando numa delegacia. Deixa os professores serem massacrados em sala de aula", afirmou, emocionado, durante o velório.
O suspeito tentou fugir, mas foi detido logo após matar Loane, perto da rodoviária de Caxias. Ele está no Centro de Custódia de Presos de Caxias.
"ISSO É COMUM" – O secretário de Segurança Pública do Maranhão, Marcos José de Moraes Affonso Júnior, informou que será aberto um processo administrativo para investigar o que aconteceu.
O secretário afirma que, de acordo com as informações preliminares, os procedimentos de segurança para a tomada do depoimento podem não ter sido cumpridos. "Pelo que sei, ela estava sozinha [com o suspeito]. É uma morte que choca muito. A polícia toda está emocionada", disse.
Segundo a delegada-geral da Polícia Civil do Maranhão, Maria Cristina Resende Meneses, o suspeito compareceu à delegacia na hora marcada para prestar depoimento, sem arma visível. Numa situação como essa, afirma, os depoentes não costumam ser revistados porque a prática é vista como abusiva por entidades de defesa dos direitos humanos.
A delegada-geral diz ainda que é comum que escrivães e investigadores tomem depoimentos, embora o ideal fosse ter um delegado presente.
"Na nossa realidade, isso é comum. Enquanto o escrivão ouve o suspeito, os outros funcionários trabalham em outras áreas. Na realidade do Brasil, um inquérito não cumpriria os prazos caso o delegado estivesse presente em todos os depoimentos. É uma praxe", completou.
Segundo Nazareno Thé, que já foi delegado da Polícia Civil, a sobrinha era uma pessoa agradável e sorridente. "Todo mundo gostava dela, era uma unanimidade”.
O pai de Loane disse que a família está em pedaços, mas que ele ainda acredita na Justiça. "Preciso acreditar", concluiu.
Loane foi enterrada ontem, às 17h, em Teresina, onde morava. Ela viajava toda semana para trabalhar em Caxias.